Thursday, June 13, 2013

Traidores e Tradutores





É consenso entre escritores e leitores que todo tradutor é uma espécie de traidor, mesmo quando se está a interpretar pensamentos alheios no próprio idioma. O que não dizer quando se trata de fazê-lo de outros?



Traduzir vem do latim traducere, que significa conduzir além, transferir. Tradutor, do latim traductore. Traidor, do latim traditore.



O “tudo vale a pena se a alma não é pequena” de Fernando Pessoa poderá ter inúmeras interpretações, e nenhuma delas chegar perto do que o poeta pensou e sentiu ao urdir as dez pequenas palavras no verso tantas vezes repetido.



O misterioso “ser ou não ser” de Shakespeare poderia ser traduzido por saber ou não saber, existir ou não. Talvez estivéssemos dando um conteúdo nesta traição que o poeta inglês sequer cogitara.



A “Morte a Deus” escrita pelo jovem Rimbaud nas portas das igrejas, como o “Deus está morto” de Nietsche, poderia significar que o jovem poeta estivesse mais próximo d`Ele, como ponderou Henry Miller, que os arrogantes poderes que dominavam a igreja daquele tempo.



“A palavra morre quando é dita, alguém diz. Eu digo que ela começa a viver naquele dia”, escreveu Emily Dickinson, a incomparável poetisa da América num econômico inglês que lhe era peculiar. A que palavra estaria ela se referindo? O que é a palavra? Ela vive? Morre? Sobrevive a quem a pronunciou? Qual o mistério que a envolve e substancia? Qual sua força?



O mistério da palavra é o do pensamento. Ela é a expressão física daquele e pode desaparecer; ele não, o pensamento cruza o espaço e o tempo e pode sobreviver.



Cada palavra é um símbolo mágico, metáfora viva que pode ser decifrada e interpretada, traduzida para o idioma metafísico.



Quando ouvimos Drummond dizer: “havia uma pedra no caminho”, a sutileza metafísica é gritante; não é uma pedra física, é mental, um obstáculo a ser removido, um problema a ser resolvido.



A palavra Deus reporta a uma imagem que vem do conceito que se tenha; pode ser um senhor com uma enorme barba, ou o próprio Universo, ou um animal sagrado, o sorriso de uma criança, o gesto generoso de quem nos ajuda, ou uma inteligência maior de onde todas as demais provêm, ou absolutamente nada. A palavra refere-se ao conceito e pode ser uma metáfora morta se não evolui com o tempo transformando-se num preconceito.



As palavras, expressões físicas dos pensamentos, são pequenos detalhes com os quais se poderá chegar a Deus ou mergulhar na escuridão.







Nagib Anderáos Neto

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Wednesday, February 01, 2012

As Criações do Espírito

De acordo com a legislação, as obras intelectuais protegidas são criações do espírito expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte como textos, conferências, obras dramáticas ou coreográficas, audiovisuais, fotográficas, pinturas, projetos, adaptações, traduções, programas de computador, coletâneas ou compilações.

É interessante observar que são criações do espírito exteriorizadas, dadas a conhecer para outras pessoas, originais, únicas. E que “uma obra exteriorizada verbalmente também goza de proteção autoral”, como bem explica o doutor Eduardo Pimenta em seu Código de Direitos Autorais. É o caso das conferências, sermões, etc. Isto significa, por exemplo, que uma conferência pronunciada pelo escritor argentino Jorge Luiz Borges numa Universidade Americana na década de sessenta tem o mesmo tratamento que um livro por ele publicado à mesma época em Buenos Aires. O fato da conferência não ter sido publicada, não significa que ela seja inédita, pois foi exteriorizada, dada a conhecer a outras pessoas; é uma obra pronta, acabada, como um livro, uma pintura, uma partitura.

Para Fernando Pessoa, “a finalidade da arte é elevar. Não elevamos uma coisa fazendo com que ela tenda para o mal. A finalidade da arte é a elevação do homem por meio da beleza”. As obras intelectuais, por serem criações do espírito humano - que é por natureza bom –, devem elevar o homem por meio da beleza, que é também conhecimento experimentado pela razão e sensibilidade.

É interessante ressaltar - como bem deixou o legislador nas entrelinhas - que o espírito humano é criador. Ele pode criar uma obra de arte, um texto, uma pintura, o futuro, uma família, empreendimentos para o bem próprio e coletivo e, muito especialmente, um novo ser humano a partir do estado evolutivo em que se encontre. Esta faculdade privativa do espírito humano - a de criar -, quando não utilizada convenientemente, traz o vazio, a insatisfação, a depressão. Estimular desde a infância o desenvolvimento deste dom fantástico que todos trazem quando chegam a este mundo significa abrir caminhos e possibilidades inusitadas para a humanidade do futuro.

Quando o legislador procurou proteger o criador de obras intelectuais durante o período de sua vida, moral e pecuniariamente, alcançando os seus descendentes alguns anos após a morte do autor, garantiu para toda a humanidade os benefícios daquela criação quando elas caíssem no domínio público, cinquenta, sessenta ou setenta anos após a morte do autor, dependendo do país, porque as criações do espírito humano - que têm sempre a finalidade de elevar através da beleza - não podem ficar encarceradas nas mãos egoístas dos que tudo querem para si, por serem, como ele, generosas e desprendidas.

Nagib Anderáos neto
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Thursday, March 10, 2011

Agnosticismo Versus Conhecimento

Tudo o que sei é que nada sei, teria dito Sócrates, a personagem de Platão. Eu menos, pois nem sei se nada sei, escreveu Fernando Pessoa no poema Agnosticismo Superior.
O agnosticismo só admite conhecimentos adquiridos pela razão e evita qualquer conclusão não demonstrada. Ele trata as questões metafísicas como discussões inúteis, por serem, em sua visão, realidades incognoscíveis.
Quem formulou o tema por primeira vez foi o biólogo inglês Huxley no século XIX. Em sua origem, a palavra significa aquilo que é oposto ao conhecimento. O sentido empregue pelo cientista parece ter sido de que Deus jamais poderia ser conhecido.
Os homens criaram um deus a sua imagem e semelhança, uma personagem na qual se poderia acreditar ou não. Nesse sentido, o agnóstico seria a pessoa que não aceita ou não acredita naquela invenção, pois o deus criado pelos homens expulsou-os do paraíso por terem eles provado o fruto proibido do conhecimento, quando uma inteligência esclarecida haveria de supor que somente através dele, o conhecimento, se poderia aproximar-se Dele.
Paradoxalmente, os agnósticos não acreditam também na não existência de Deus, pois da mesma forma, para eles, que a existência de Deus não pode ser provada pela razão, sua inexistência também não o pode.
São lucubrações realmente confusas. Se Deus se confunde com a própria criação, como um homem se confunde com sua vida, seus filhos, seus amigos, suas obras, Ele pode, sim, ser conhecido.
O conhecimento do Universo físico, tal como a ciência tem empreendido, é uma forma de se chegar a Ele. O conhecimento da figura humana em sua conformação psicológica e espiritual, alem da biológica, é também uma complementação daquele. Pensamentos, sentimentos e emoções não são físicos, manifestam-se através do corpo, mas são metafísicos e cognoscíveis. Se atentarmos bem, a realidade do mundo metafísico é tão ou mais eloqüente que a do físico, por ser aquele o mundo das idéias, dos ideais, dos projetos, dos sentimentos, dos pensamentos e sonhos. Ao sonhar, podemos vivenciá-lo como quando experimentamos uma maçã. Todo artista toca neste mundo ao criar a sua obra e experimenta uma sensação sublime e indizível ao fazê-lo. Qualquer ser humano ao sonhar adentra a este mundo ao tornar-se ator e espectador naquela viagem.
Para os evolucionistas, o homem e o macaco teriam uma ascendência comum. Eles descartam a existência de Deus e concebem todo o Universo como obra do acaso. Os criacionistas cristãos acreditam que Deus criou o mundo como ele é; e assim também o homem. Os criacionistas evolucionistas julgam que Deus criou e foi o início de um Universo em permanente movimento, evolução e transformação, e que está presente em sua Obra.
Não podemos deixar de considerar que a biologia evolutiva é uma realidade e que há muito o que descobrir e aprender sobre o processo evolutivo. A realidade da evolução é incontestável; e o homem pode experimentá-la dentro de si conscientemente, e não apenas constatá-la materialmente. A evolução não se dá apenas por seleção natural. No homem ela pode ser realizada por seleção mental de pensamentos e idéias que tendam à evolução. Por tal fato, não é uma ilusão ponderarmos que somos súditos privilegiados nesta parte do Universo conhecida por termos mente e sensibilidade; capacidade de criar.
A crise que se vive, mais do que ambiental e cultural é uma crise espiritual que tem afastado o ser humano de seus irmãos pelos fanatismos, pela idolatria e a ignorância. Tudo evolui. O homem precisa evoluir, mental e espiritualmente falando, para deixar de ser cético e crente no que desconhece. Só o conhecimento libera; e a ele não se chega senão através de processos que tendam à evolução.
Não somos um tipo de macaco que reluta admiti-lo. Somos seres humanos que evoluem biologicamente e que podem chegar a fazê-lo espiritualmente se decidirem tomar as rédeas do destino e transformar-se psicológica e espiritualmente; à matemática biológica se deverá agregar a psicológica e espiritual que permitirão a complementação da evolução material. O Universo e o homem não são relativos.
O ponto de conciliação entre criacionistas e evolucionistas parece ser aquele que aponta o Universo como a face visível de Deus, e suas Leis, a invisível.
O homem nasceu para ser livre. Sua tristeza é ver-se acorrentado à escravidão mental imposta por preconceitos que sobrevivem em sua mente incompreensivelmente. Cada qual pode ser seu próprio Deus experimentando aquela liberdade e a consciência de existir. Os grilhões mentais são mais cruéis que os que sangravam os corpos de nossos antepassados que aqui foram a nossa vergonha e também a de Darwin.

Nagib Anderaos Neto
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Monday, September 20, 2010

Bruna, Borges e o Outro

Onze de Agosto de 2001.Biblioteca Nacional em Buenos Aires.A palestra por se iniciar. No saguão, enquanto uns fumavam e outros contemplavam a galeria com as fotos dos imortais, um jovem brasileiro cochicha no ouvido da namorada: “Quem é este tal de Borges?”

A palestra versaria sobre o centenário de nascimento de outro argentino ilustre, o pensador e humanista Carlos Bernardo González Pecotche.

Recordei-me da linda atriz brasileira que se transformara em escritora e que numa infeliz entrevista dissera que nunca ouvira falar de Fernando Pessoa que eu conhecera tardiamente, em setenta e dois, como o poeta argentino, em noventa e dois. Quanta perda de tempo! Tempo perdido não volta mais, ele flui como o rio de Heráclito e a areia que desce firme e decidida na ampulheta.

Por muito tempo achei que àquele jovem iletrado faltava muita coisa. Depois compreendi que todos fomos iletrados um dia - se ainda não o somos - , e muitos tiveram paciência conosco. Bondade, mais bondade é o que faz falta; palavras mágicas que ecoavam em meus ouvidos há muito tempo, e que eu deveria ter lido nuns escritos de González Pecotche. Se eu não tenho paciência com os outros, como poderiam tê-la comigo? A Natureza ensina paciência. O sol ensina paciência.

Recordei-me do Livro de Areia, do Outro, onde Borges maduro encontrava com o outro Borges, o jovem, em 1969, ao norte de Boston, em Cambridge, e os dois conversam sobre a eternidade, a juventude, a velhice, a morte e a arte. Falam da família, do pai morto e seus gracejos contra a fé, o defunto com uma mão de criança sobre a mão de um gigante, e um Jesus a falar como um gaúcho através de parábolas, para não se comprometer.

Borges deixou um exemplo grandioso: a criação não depende dos olhos sãos, do computador ou da parafernália eletrônica. Foi capaz de produzir a parte ponderável de sua obra depois de adentrar a escuridão, desmistificando a idéia de que a tecnologia e a visão física perfeita pudessem trazer uma felicidade completa. Borges criou e sobreviveu, apesar da cegueira, como Cervantes, apesar da prisão.

O maior cego não é o que não pode ver, mas o que não quer entender.

Falaram sobre livros e sobre Whitman – o incapaz de mentir -. Num de seus poemas, Walt Whitman descreve a desconcertante experiência ao assistir a uma palestra de um grande astrônomo que apresentava seus gráficos, números, mapas, diagramas, e se enfastia, se aborrece com aquelas explicações acadêmicas, saindo, então, do auditório, e, à rua, “no ar úmido e místico da noite” pode olhar, “em perfeito silêncio, para as estrelas”.

A expressiva lição da realidade da infinitude do Universo que nos cerca bem como do mundo mental que a tudo interpenetra e compõe deveria ser muito mais bela e instrutiva do que a mera racionalidade pudesse descrever. ”Não posso conceber nenhum ser mais maravilhoso que o homem”, dizia o poeta da meia – noite, do sono, da morte e das estrelas, que se autoconsiderava uma espécie de deus libertador americano.

A poesia de Whitman é saudatória, como a de Fernando Pessoa, quando o poeta português saúda-nos, deseja-nos sol e nos dá a sua poesia. Ao despedir-se dos seus versos, do alto de sua janela, após concluir que passa e fica, como o Universo, deseja para si mesmo – e para sempre – um cenário como aquele: um dia cheio de sol.
No poema Eros e Psique, ele relata a aventura do Príncipe fadado a procurar pela Princesa dormida e descobre, ao final da aventura, que ele mesmo era a Princesa que dormia.

Para González Pecotche, existe no interior de cada indivíduo um ser encantado, adormecido, encoberto e escondido que quer se manifestar. O encontro de Borges consigo próprio num tempo qualquer do passado poderia estar representando a culminação de uma procura incansável que muitos jamais chegam a concluir.

Depois de alguma conversa, Borges e o outro sobrenaturalmente se despediram e nunca mais se viram, nunca souberam ao certo se aquele encontro e aquela conversa foram reais, da mesma forma que eu não sei se aquele jovem brasileiro era uma personagem ou alguém que realmente existiu.

Nagib Anderaos Neto
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Monday, January 11, 2010

Correspondências

Correspondências


Comprei AS Flores do Mal em oitenta e sete. Era uma tradução de Jamil Almansur Haddad. Li e reli a obra do poeta francês, mas Baudelaire continuou distante do que eu pudesse sentir ou compreender. Os tradutores são, de certa forma, traidores. É muito difícil ser fiel ao texto, principalmente no caso da poesia. Mesmo assim, houve ali dois poemas que me chamaram a atenção: Correspondências e O Albatroz.
Muitos anos depois, ao ler a biografia do poeta, seguindo o conselho de Beto Portinari, compreendi melhor aqueles dois poemas e toda a obra do angustiado escritor. O amigo dissera-me que a leitura da vida do artista poderia me ajudar a compreender a sua obra.
Como em meu tempo de menino o francês era matéria obrigatória na escola, arrisquei a minha própria traição:
“A Natureza é um templo onde os pilares viventes
Deixam, às vezes, escapar palavras confusas.”
Estes primeiros versos transportaram-me à infância e fizeram-me experimentar novamente o sentimento panteísta, pois vozes misteriosas respondem-se na Natureza anunciando uma correspondência entre o que é visível e invisível, entre matéria e espírito, pois ela é um vasto templo, único e verdadeiro, cujos pilares deixam à mostra hieróglifos misteriosos e familiares que o passante distraído não os percebe, mas que os decifradores podem captar.


“O homem atravessa-a através de uma floresta de símbolos que observam-no com olhares familiares.”
O mundo visível como uma outra face do invisível. E por que não mais real? O véu que cobre a Natureza desvela uma realidade maior, embora invisível aos olhos físicos.
“Como ecos prolongados que na distância se confundem numa tenebrosa e profunda unidade, vasta como a noite e a claridade, perfumes, cores e sons se respondem”.
“Há perfumes frescos como a carne das crianças, doces como o som do oboé, verdes como as pradarias, e outros corrompidos, ricos e triunfantes, tendo a expansão de coisas infinitas, como o âmbar, o almíscar e o incenso que cantam os transportes do espírito e dos sentido.”
Toda esta simbologia de Baudelaire, onde o físico e o metafísico confundem-se numa inspiração que nem o próprio poeta sabe de onde vem, reporta-nos aos símbolos e às metáforas de Borges e Fernando Pessoa:
“Símbolos? Estou farto de símbolos”,
diz-nos o amargurado engenheiro Álvaro de Campos.
“Mas dizem que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.”
E alguns dias antes, o engenheiro-poeta resume versejando, lá pelos idos de 33:
“Símbolos. Tudo símbolos.
Se calhar tudo é símbolos.
Será tu um símbolo também? “
Neste Universo de símbolos, tudo são metáforas. Alguém já expressou que toda a palavra é uma metáfora morta.


Seria o ser humano uma metáfora viva, expressão ou símbolo de uma realidade maior?
A palavra metáfora provém do grego e fundamenta-se numa relação de semelhança entre o sentido próprio de uma palavra e o figurado.
No clássico exemplo de se chamar de raposa uma pessoa astuta ou a juventude como a primavera da vida, o esperto animal empresta vivacidade aos humanos e a Natureza a sua beleza à juventude.

Há eloqüentes metáforas cheias de otimismo e de vida e as negras e entristecidas. A luz do conhecimento que poderia iluminar os escuros âmbitos do entendimento sugere vida, aprendizado e uma outra metáfora: o caminho do aperfeiçoamento que poderia ser percorrido pela inteligência de quem decidisse abandonar as velhas metáforas da passividade, do conformismo e do pessimismo.

A vida, como um vale de sofrimentos e de lágrimas, metáfora menor e entristecida que nos reporta ao aforismo pessimista que diz que ela é amarga ou que errar é humano, faz-nos refletir que a vida deve ser doce e que acertar é humano.
Se as nossas vidas são metáforas, expressões e símbolos de uma realidade maior, façamos com que elas se preencham com o conteúdo da natureza cheia de luz, movimento e transformação, e se correspondam com a Natureza.

Nagib Anderáos Neto
neto.nagib@gmail.com

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Thursday, April 16, 2009

Os Colecionadores

OS COLECIONADORES



Há pessoas que colecionam frases e pensamentos como se fossem borboletas inanimadas, palavras mortas, folhas murchas e sem vida com as quais se marcam as páginas esquecidas de livros que nunca terminam de ler. São os colecionadores de coisas inanimadas que perigam transformar-se nelas atravessando o tempo exalando tristeza e desolação.
Lembra-me um livro que nunca cheguei a terminar de ler na adolescência cujo título era “Hei de Vencer”. Durante muitos anos deixei aquela capa voltada para mim em na pequena escrivaninha imaginando que repetindo aquelas palavras diariamente eu chegaria a realizar todos os meus sonhos. A vida ensinou-me que palavras sem vida nada podem transformar; e que eu deveria criar as minhas próprias palavras infundindo-lhes vida através do esforço constante por compreender-me e o que me cerca, e realizar a impostergável tarefa do aprendizado diário.
Repetir palavras sem vida é uma tarefa triste, inútil e sem esperança.
Lá pelos idos de 1968 ganhei de presente “O Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro, o misterioso heterônimo de Fernando Pessoa. Tio Paulo de Lima presenteou-me a obra que habitara sua biblioteca por muitos anos numa daquelas frias e úmidas noites paulistanas de Julho em sua casa à Rua Arthur de Azevedo. Era uma terceira edição datada de 1958 realizada pela Editora Ática de Lisboa que ele havia comprado na livraria Pedro Siciliano da Rua Dom José de Barros. Eu era um jovem que gostava de leitura e o presente era especial, do acervo pessoal daquele velho homem apaixonado pela vida e pela literatura. Devorei a obra no dia seguinte, mas a página 23 do “Guardar de Rebanhos” fixou-se para sempre em minha recordação. Havia uma flor seca e esmagada entre as páginas 22 e 23 onde o poeta dizia:

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas coisas,
É o de quem olha para as árvores,
E de quem desce os olhos pela Estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda pelo campo
E triste como esmagar flores em livros
E por plantas em jarros.

Ao olhar e tocar aquela seca flor esmagada que até hoje está ali em meu pequeno livro, senti a angustia de Cezario Verde, um preso em liberdade a andar pela cidade onde tantas vezes se tem a impressão de que tudo é falso, artificial, antinatural.
Fernando Pessoa – na voz de seu mestre-heterônimo Alberto Caieiro – faz-nos refletir sobre a inutilidade de colecionar coisas mortas, palavras sem vida, conhecimentos inanimados.
No instrutivo livro “Diálogos”, do pensador Carlos Bernardo González Pecotche, em seu colóquio de número 31, diz o autor:
“Uma coisa é aprender pelo mero fato de saber algo novo, e outra, quando o saber é empregado para alcançar uma efetiva superação. No primeiro caso, os ensinamentos viriam a ser como as borboletas que anunciam o bom tempo, alegrando o campo florido das ilusões com o vistoso colorido de suas asas delicadas e graciosas. É fácil tocá-las e mais fácil ainda deleitar-se com elas, espetando depois seu pequeno tórax para colecioná-las sobre um cartão opaco”.
“Todavia, enquanto se faz isto, o tempo bom que elas anunciaram vai passando sem ser aproveitado, perdendo-se assim oportunidades difíceis de recuperar.”
“Consideremos, então, que enquanto os conhecimentos se mantêm ativos em alguns, aproveitando com eles o bom tempo, em outros permanecem estáticos como as borboletas que jazem espetadas na cartolina do colecionador”.


Nagib Anderáos Neto
www.nagibanderaos.com.br

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