Reminiscência de São Carlos do Pinhal
Sob o título “Aprendendo a Ver o Invisível” proferi palestras públicas em várias sedes da Fundação Logosófica, como as de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Santos, Florianópolis e Brasília.
Era para expor aspectos sobre a Logosofia, criação de Carlos Bernardo González Pecotche, por ele definida como a “especialidade científica e metodológica que se ocupa da reativação consciente do indivíduo”, também tida como a “ciência do invisível” por conter todo o princípio metodológico que ensina o ser a conhecer a vida e a atividade dos pensamentos, dos sistemas mental, sensível e instintivo, que são invisíveis.
Planejei expor, a certa altura, uma passagem de minha vida inspirada no diálogo nº 44 do livro “Diálogos”, de autoria do criador da Logosofia sob o título “O ser que todos temos esquecido, em quem ninguém pensa apesar de constituir algo essencial para nossa vida”.
Para expor uma parte do invisível que é referido nesse diálogo, recorri a um episódio de minha vida quando iniciava o período da adolescência.
Quando tinha onze anos, para então seguir o chamado curso ginasial, fui estudar no Ginásio Municipal da cidade de São Carlos, hoje chamado Diocesano, cidade que o bispo Dom Gastão Liberal Pinto dizia situar-se no coração do Estado de São Paulo.
Ali cumpri o curso em regime de internato; vivia o tempo todo no interior do ginásio, de manhã à noite, estudando, praticando esportes e convivendo com dezenas de outros colegas, com direito a passear pela cidade aos domingos e as férias nas casas das cidades de onde provínhamos.
Dentre tantos colegas, referi-me a um em especial, Huascar, com quem convivi de 1941 a 1947, desde os onze até os quinze anos de idade.
Em dezembro de 1947, então formados no curso ginasial, de cuja turma tive a honra de ser orador e da qual foi paraninfo Luiz Augusto de Oliveira, “o Luizão”, que hoje leva seu nome na estrada que sai de São Carlos , encontrávamos-nos na porta do majestoso edifício do ginásio para despedir-nos dos colegas que dali em diante passariam a viver nas cidades de origem.
Naquela época usávamos calças curtas e também gravatas.
Eu estava com uma gravata azul, reluzente, feita de fibra sintética criada após a recém-encerrada 2a. Guerra mundial. Havia sido presenteada por um querido parente.
Quando o Huascar foi se despedir de mim, disse-me: “Eu gostaria de levar essa gravata como lembrança”.
E eu, que gostava tanto daquela gravata, respondi: “Esta não. É a que mais gosto. Vou abrir a mala que está aqui e você pode escolher qualquer gravata para levar de lembrança”.
E ele me respondeu: “Não quero outra gravata. Se não posso levar essa, não quero qualquer outra”.
Assim nos despedimos, ele sem a gravata azul e eu com ela.
Muitos anos se passaram sem que nos tivéssemos visto ou conversado.
No curso desses anos, mudei-me para São Paulo, segui outros cursos, casei-me, tive filhos e, para onde ia vivendo, levava sempre comigo a tal gravata que não dei ao Huascar.
A gravata já havia saído de moda e eu não a usava mais.
Mas sempre me fazia recordar do Huascar. E pensava: “Porque não dei a gravata ele?“ Serve sim para recordar as tantas vivências juntos no ginásio interno em São Carlos.Mas, e ele sem ela?
Assim passaram-se trinta anos, quando em dezembro de 1977 fui convidado para uma festa de confraternização com os formandos da turma de 1947, nas dependências daquele mesmo ginásio.
Pensei: “Será que o Huascar também irá?” Reuni as fotografias da época, cartas, manuscritos e a tal gravata.
Pensava em entregá-la e dizer quanto ela me havia feito recordar dele e das tantas vivências da adolescência.
Quando lá cheguei, encontrei um colega que logo me reconheceu e perto dele havia outro que eu não consegui identificar.
Eu portava a gravata no bolso externo de meu paletó, sem embrulho. Queria entregá-la ao Huascar rapidamente.
E aquele colega que me identificou perguntou-me: ”Você sabe quem é esse que está ao meu lado?” Respondi: “Não”. Era difícil reconhecê-los depois de 30 anos, todos com aproximadamente 45, alguns já sem cabelo...
E ele me disse: “É o Huascar”.
Fiquei muito feliz com o encontro e nos abraçamos entusiasticamente.
Logo em seguida coloquei a mão no bolso para pegar a gravata, e antes que a tivesse retirado o Huascar me disse: ”Pois é Antonini, a última vez que nos vimos você ficou me devendo uma gravata”.
Fiquei atônito, perplexo. Parecia-me impossível que, depois de 30 anos, ele ainda se recordasse daquele episódio. Que eu recordasse era natural, pois a gravata esteve sempre comigo.
Saquei então a gravata do bolso do paletó e a entreguei dizendo: “Mas hoje eu a trouxe para você”.
Foi a vez dele de ficar perplexo e atônito, enquanto eu lhe dizia quanto aquela gravata me havia feito recordar dele durantes três décadas.
Cinco anos depois, comecei a estudar um livro publicado em 1952 chamado “Diálogos”, de autoria de González Pecotche, o criador da Logosofia.
Continha 53 diálogos, todos me encantando, um mais que o outro, quando me detive, de modo especial, nas reflexões que me proporcionavam o Diálogo 44.
Quando na palestra relatava o episódio da gravata, mencionei trechos desse Diálogo 44, como os seguintes:
“Existe um ser a quem todos, sem exceção, temos esquecido; se é recordado uma ou outra vez, tem sido em forma circunstancial, mas essa recordação fugaz não cumpre o que vou assinalar, razão pela qual me sinto movido a declarar seu geral esquecimento. Esse ser é a criança que cada um foi, aquela que brindou os melhores dias da existência e a quem, pode-se dizer, lhe devemos grande parte do que agora somos”.
“Aquele que pensa nessa criança e a contempla através de suas recordações, em seus brinquedos, em seus pensamentos, em suas inclinações e em sua inocência, verá quanto tem de aprender dela e quanto lhe deve; mais ainda: quanto deveria conservar daquele pequeno que hoje, grande em tamanho e em idade, seja-lhe permitido experimentar, pelo menos, algumas daquelas inocentes porém gratas sensações que brindaram a sua vida as melhores horas”.
“Seria bom se cada um recordasse esse menino, o que foi, o que morreu. Que o recorde muito, porque nessa recordação vai implícito o enlace da atual existência com a que foi, pois o esquecimento não somente destrói o vínculo que as une, senão também a própria sensibilidade”.
“Se esquecemos a nossa própria criança, aquela que morreu, cometemos com isso, talvez sem querer, um crime simbólico; morrerá também o jovem, e, sucessivamente, o que fomos ou temos sido em cada idade. Assim se irá esfumando no esquecimento e, sem sentir, morrerá em nós, lentamente, toda nossa vida”.
José Antonio Antonini
Advogado, escritor, editor.
( 1932 – 2006 )
Era para expor aspectos sobre a Logosofia, criação de Carlos Bernardo González Pecotche, por ele definida como a “especialidade científica e metodológica que se ocupa da reativação consciente do indivíduo”, também tida como a “ciência do invisível” por conter todo o princípio metodológico que ensina o ser a conhecer a vida e a atividade dos pensamentos, dos sistemas mental, sensível e instintivo, que são invisíveis.
Planejei expor, a certa altura, uma passagem de minha vida inspirada no diálogo nº 44 do livro “Diálogos”, de autoria do criador da Logosofia sob o título “O ser que todos temos esquecido, em quem ninguém pensa apesar de constituir algo essencial para nossa vida”.
Para expor uma parte do invisível que é referido nesse diálogo, recorri a um episódio de minha vida quando iniciava o período da adolescência.
Quando tinha onze anos, para então seguir o chamado curso ginasial, fui estudar no Ginásio Municipal da cidade de São Carlos, hoje chamado Diocesano, cidade que o bispo Dom Gastão Liberal Pinto dizia situar-se no coração do Estado de São Paulo.
Ali cumpri o curso em regime de internato; vivia o tempo todo no interior do ginásio, de manhã à noite, estudando, praticando esportes e convivendo com dezenas de outros colegas, com direito a passear pela cidade aos domingos e as férias nas casas das cidades de onde provínhamos.
Dentre tantos colegas, referi-me a um em especial, Huascar, com quem convivi de 1941 a 1947, desde os onze até os quinze anos de idade.
Em dezembro de 1947, então formados no curso ginasial, de cuja turma tive a honra de ser orador e da qual foi paraninfo Luiz Augusto de Oliveira, “o Luizão”, que hoje leva seu nome na estrada que sai de São Carlos , encontrávamos-nos na porta do majestoso edifício do ginásio para despedir-nos dos colegas que dali em diante passariam a viver nas cidades de origem.
Naquela época usávamos calças curtas e também gravatas.
Eu estava com uma gravata azul, reluzente, feita de fibra sintética criada após a recém-encerrada 2a. Guerra mundial. Havia sido presenteada por um querido parente.
Quando o Huascar foi se despedir de mim, disse-me: “Eu gostaria de levar essa gravata como lembrança”.
E eu, que gostava tanto daquela gravata, respondi: “Esta não. É a que mais gosto. Vou abrir a mala que está aqui e você pode escolher qualquer gravata para levar de lembrança”.
E ele me respondeu: “Não quero outra gravata. Se não posso levar essa, não quero qualquer outra”.
Assim nos despedimos, ele sem a gravata azul e eu com ela.
Muitos anos se passaram sem que nos tivéssemos visto ou conversado.
No curso desses anos, mudei-me para São Paulo, segui outros cursos, casei-me, tive filhos e, para onde ia vivendo, levava sempre comigo a tal gravata que não dei ao Huascar.
A gravata já havia saído de moda e eu não a usava mais.
Mas sempre me fazia recordar do Huascar. E pensava: “Porque não dei a gravata ele?“ Serve sim para recordar as tantas vivências juntos no ginásio interno em São Carlos.Mas, e ele sem ela?
Assim passaram-se trinta anos, quando em dezembro de 1977 fui convidado para uma festa de confraternização com os formandos da turma de 1947, nas dependências daquele mesmo ginásio.
Pensei: “Será que o Huascar também irá?” Reuni as fotografias da época, cartas, manuscritos e a tal gravata.
Pensava em entregá-la e dizer quanto ela me havia feito recordar dele e das tantas vivências da adolescência.
Quando lá cheguei, encontrei um colega que logo me reconheceu e perto dele havia outro que eu não consegui identificar.
Eu portava a gravata no bolso externo de meu paletó, sem embrulho. Queria entregá-la ao Huascar rapidamente.
E aquele colega que me identificou perguntou-me: ”Você sabe quem é esse que está ao meu lado?” Respondi: “Não”. Era difícil reconhecê-los depois de 30 anos, todos com aproximadamente 45, alguns já sem cabelo...
E ele me disse: “É o Huascar”.
Fiquei muito feliz com o encontro e nos abraçamos entusiasticamente.
Logo em seguida coloquei a mão no bolso para pegar a gravata, e antes que a tivesse retirado o Huascar me disse: ”Pois é Antonini, a última vez que nos vimos você ficou me devendo uma gravata”.
Fiquei atônito, perplexo. Parecia-me impossível que, depois de 30 anos, ele ainda se recordasse daquele episódio. Que eu recordasse era natural, pois a gravata esteve sempre comigo.
Saquei então a gravata do bolso do paletó e a entreguei dizendo: “Mas hoje eu a trouxe para você”.
Foi a vez dele de ficar perplexo e atônito, enquanto eu lhe dizia quanto aquela gravata me havia feito recordar dele durantes três décadas.
Cinco anos depois, comecei a estudar um livro publicado em 1952 chamado “Diálogos”, de autoria de González Pecotche, o criador da Logosofia.
Continha 53 diálogos, todos me encantando, um mais que o outro, quando me detive, de modo especial, nas reflexões que me proporcionavam o Diálogo 44.
Quando na palestra relatava o episódio da gravata, mencionei trechos desse Diálogo 44, como os seguintes:
“Existe um ser a quem todos, sem exceção, temos esquecido; se é recordado uma ou outra vez, tem sido em forma circunstancial, mas essa recordação fugaz não cumpre o que vou assinalar, razão pela qual me sinto movido a declarar seu geral esquecimento. Esse ser é a criança que cada um foi, aquela que brindou os melhores dias da existência e a quem, pode-se dizer, lhe devemos grande parte do que agora somos”.
“Aquele que pensa nessa criança e a contempla através de suas recordações, em seus brinquedos, em seus pensamentos, em suas inclinações e em sua inocência, verá quanto tem de aprender dela e quanto lhe deve; mais ainda: quanto deveria conservar daquele pequeno que hoje, grande em tamanho e em idade, seja-lhe permitido experimentar, pelo menos, algumas daquelas inocentes porém gratas sensações que brindaram a sua vida as melhores horas”.
“Seria bom se cada um recordasse esse menino, o que foi, o que morreu. Que o recorde muito, porque nessa recordação vai implícito o enlace da atual existência com a que foi, pois o esquecimento não somente destrói o vínculo que as une, senão também a própria sensibilidade”.
“Se esquecemos a nossa própria criança, aquela que morreu, cometemos com isso, talvez sem querer, um crime simbólico; morrerá também o jovem, e, sucessivamente, o que fomos ou temos sido em cada idade. Assim se irá esfumando no esquecimento e, sem sentir, morrerá em nós, lentamente, toda nossa vida”.
José Antonio Antonini
Advogado, escritor, editor.
( 1932 – 2006 )
0 Comments:
Post a Comment
<< Home